quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Palestina: Como sempre, um acordo baseado em farsa

Por Lara Sartorio

Lara Sartorio
Mais uma vez fica evidente que o combinado e o que ainda será discutido nada mais é que a exigência de acordos descumpridos por Israel
09/09/2014
Por Lara Sartorio
da Cisjordânia (Palestina)
Depois de 51 dias de bombardeio e genocídio promovidos por Israel, apoiado e patrocinado pelos Estados Unidos, na Faixa da Gaza, uma proposta de cessar-fogo realizada pelo Egito no dia 26 de agosto foi acordada.
O ataque chamado “Operação Proteção de Bordas” exterminou 2.178 palestinos – dentre eles, cerca de 600 crianças – e 69 israelenses foram mortos – soldados, quase em sua totalidade. A ONU reporta que pelo menos 1.500 crianças ficaram órfãs e 110 mil estão desabrigados.
Os termos do acordo de cessar-fogo incluem a permissão para que Gaza seja reconstruída (50% do território ficou arruinado); garantem a abertura de todas as fronteiras para a entrada de alimentos, medicamentos e material de construção; e amplia o espaço marítimo para a pesca de 6 milhas náuticas desde a costa para 12 milhas náuticas.
Mesmo que o acordo demonstre uma flexibilização do Hamas, já que os termos não denotam avanços significativos, a ideia é que configure uma contenção das mortes palestinas e funcione como trégua preliminar às negociações do mês seguinte, quando serão debatidos termos que incluem a abertura de um aeroporto e de um porto em Gaza.
Mar de Gaza
Para entender o acordo é preciso retomar a histórica do território palestino. Depois da invasão dos judeus sionistas em 1948, quando foi fundado o Estado de Israel, a Palestina foi dividida em territórios desconectados, Cisjordânia e Gaza.
A Faixa de Gaza foi capturada e ocupada por Israel na guerra de 1967. Desde então, é mantido controle completo dos espaços aéreo e marítimo do território, bem como das fronteiras.
Os palestinos precisam da permissão de Israel para usar o mar de Gaza, o que impõe restrições e limita consideravelmente sua maior fonte de renda, a pesca. Barcos de pescadores foram bombardeados com frequência por “ultrapassar a distância permitida”. À época, foi acordada, entre Israel e Palestina, uma permissão de 20 milhas náuticas para o exercício da pesca. Em 2006, porém, a distância passou a ser de 3 milhas náuticas, como forma de retaliação à vitória eleitoral do Hamas. Em 2012, o acordo de cessar-fogo, que deu fim ao genocídio em Gaza naquele ano, incluiu a extensão para 12 milhas náuticas, mas Israel descumpriu o combinado e permitiu apenas 6 milhas náuticas.
Aeroporto e porto
Apesar de o Acordo de Oslo, de 1993, ter mantido o controle de Israel sobre o espaço aéreo de Gaza, foi permitido que construíssem um aeroporto. A obra foi concluída em 1998. No ano de 2000, Israel fechou o aeroporto e, em 2001, bombardeou-o.
O mesmo aconteceu com a decisão do acordo que permitiu Gaza construir um porto. Foi iniciada a construção em 2000, mas meses depois foi destruído.
Assim, fica evidente que o combinado e o que ainda será discutido nada mais é que a exigência de acordos descumpridos por Israel.
Uma semana depois, a história se repete e, tal como em 2012, Israel desrespeita o acordo e mata um pescador no mar de Gaza. Simultaneamente, projetos maiores de retaliação ao povo palestino foram declarados pelo primeiro-ministro de Israel, Netanyahu.
(mais) 400 ha roubados
No dia 30 de agosto, o político anunciou a maior apropriação de terras na Cisjordânia dos últimos 30 anos. Cinco vilas serão afetadas em um roubo de 400 hectares. A história dessas vilas já é de ininterruptas destruições e despejos por parte de Israel, marcadamente no evento conhecido como Nakba em 1948 (demolições e massacres na fundação do Estado de Israel) e na guerra de 1967.
Desde a década de 1980, o Estado israelense não para de expandir os assentamentos nos entornos de vilas e cidades palestinas. Considerados ilegais pela lei internacional, os assentamentos são a concretização do plano sionista de expulsão dos palestinos. Neles, é aplicado um sistema de apartheid em que serviços de infraestrutura são construídos através da demolição de moradias palestinas para servirem exclusivamente aos colonos – demarcados com a construção de muros, torres de vigilância e um sistema de segurança específico para as colônias, com tanques de guerra e forte armamento.
No plano anunciado por Israel, pelo menos 20 casas completas de um dos vilarejos, Surif, já receberam aviso de despejo. Dentre as informações contidas nesses documentos, consta o prazo de 45 dias para apresentar reclamações à corte do Estado de Israel. A maior parte dos agricultores das vilas já têm processos pendentes relativos à apropriação ilegal de suas terras.
Hassan Manasra, 88 anos, trabalha e habita uma parcela de terra dentro do que foi declarado, na semana passada, como “terra de Israel”. Manasra foi um dos despejados em 1948 e havia se mudado para uma caverna ao longo de um morro na região de Wadi Fukin. Ao lado da caverna, Manasra construiu um barraco de 2m², sem energia elétrica e sem água corrente. Essa é uma das “ostentadoras” casas que receberam a visita de soldados israelenses com aviso de despejo.
Na Cisjordânia
Simultaneamente, a Cisjordânia sofre incursões em que tanques chegaram a adentrar grandes cidades, tal como Belém, e palestinos são presos indiscriminadamente. O exército israelense já prendeu pelo menos 178 pessoas na Cisjordânia – incluindo uma criança de 12 anos em Hebron no dia 8 de setembro- e a polícia da Autoridade Palestina (AP) prendeu 75 pessoas.
Essa informação pode parecer confusa à primeira vista. É preciso, portanto, mirar mais profundamente a correlação de forças políticas na Palestina. A AP, produto dos acordos de Oslo, é presidida por Abbas, do partido Fatah. Não só o próprio acordo é considerado uma grande traição aos palestinos, por ter legitimado atrocidades – tais como o controle da água e a divisão do território em áreas ABC, o que significou a entrega de mais de 70% da Cisjordânia ao controle completo de Israel e mais de 20% a seu controle parcial –, como a presidência do Fatah representa um continuísmo dessa política de acordos com Israel, que a história provou ser falha.
Ressalta-se que a própria polícia da AP é treinada e tem seus salários pagos diretamente pelos EUA. De modo que fica clara a relação entre Israel e a elite palestina.
A quem serve o cessar-fogo?
É inegável que a visibilidade do genocídio em Gaza foi elemento diferenciador dos outros tantos massacres em 66 anos de ocupação militar. Era necessário, portanto, voltar a invisibilizar esse povo sem rosto, transformado em números.
A solução foi forjar um fim do conflito baseado em farsa. A brutalidade em Gaza gerou um fluxo de informação contínuo em que imagens de crianças mutiladas se perdiam entre imagens publicitárias dos jornais. Números de mortes crescentes e um bombardeio de notícias fez com que o público não mais se chocasse e percebesse a própria imobilidade. O cessar-fogo foi também um cessar dos assuntos da limpeza étnica e do neocolonialismo contínuo nos territórios da Palestina.
Guerra energética
Os bombardeios em Gaza e o avanço de grupos fundamentalistas no Oriente Médio, tais como o Isis (o autoproclamado Estado Islâmico do Iraque e da Síria), são ações que confirmam que o que está em curso é uma grande guerra energética.
O Isis é um grupo fundado e financiado pelos EUA e Israel que vem promovendo ataques na Síria contra o governo Assad, desde 2011. Em julho deste ano, o grupo avançou sobre o Iraque exterminando milhares e mantendo mulheres em cativeiro para exploração sexual. O grupo também tentou avançar sobre a fronteira do Líbano em agosto, sendo rapidamente contido.
É sabido que em dezembro de 2010 foi descoberto o “mais proeminente terreno de gás natural já encontrado na Bacia do leste Mediterrâneo”, na área da Bacia do Leviatã, capaz de impulsionar Israel como um grande exportador. O problema é que a maior parte das bases está situada nas regiões de Gaza e do Líbano. A Síria já realizou contratos milionários de exploração da bacia com a Rússia, o que motivou os Estados Unidos a intervirem no país através do financiamento de grupos como o Isis.
Certamente isso explica em parte a estratégia dos imperialistas em sua guerra declarada contra parte do mundo árabe. O interesse de dominação é o interesse de controle financeiro do ouro moderno: o petróleo e o gás.
Além disso, a proteção do Curdistão (região autônoma do Iraque) pelos EUA – único limite imposto pelos estadunidenses ao Isis – faz todo sentido quando se observa que a região é estratégica para Israel na exploração e no escoamento dos hidrocarbonetos da bacia.
Na mesma semana em que foi acordado o cessar-fogo em Gaza, notícias revelam que Israel se prepara para atacar o Líbano, único país cujo grupo paramilitar, o Hezbollah, teria condições de conter o avanço do Isis.
Se o ataque se confirmar, o objetivo de desestabilização do grupo pelo maior armamento do Oriente Médio, o de Israel, poderá significar a dominação do Isis no país. As políticas articuladas no Oriente Médio demonstram uma guerra energética terceirizada do imperialismo, que se utiliza de grupos árabes para dividir e dominar sem sujar as mãos de sangue.
A base perversa de um mundo que vive na realidade sua própria ficção brutal está no sistema político e econômico que estrutura o mundo globalizado: o capitalismo. Não deveria surpreender ações que realizam verdadeiras limpezas étnicas para concretizar interesses financeiros se ainda não nos revoltamos com um sistema que tem por fundamento a exploração do homem pelo homem e o roubo da força de trabalho.

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